Monday, March 12, 2018

A outra metade do Céu


A frase tem sido repetida ad aeternum: “As mulheres sustentam a metade do Céu”, terá afirmado Mao Zedong, nos dias da alvorada da Nova China por volta de 1949. Várias leis foram adotadas nos primeiros anos da República Popular, procurando corrigir séculos de desigualdade gritante e exploração. Desde então registaram-se progressos extraordinários, mormente após o início das reformas há 40 anos quando houve um maior esforço por materializar os dispositivos legais que promovem o papel da mulher na sociedade.
Neste processo subsistem, contudo, vários obstáculos. Por exemplo, a cúpula do poder escreve-se, basicamente no masculino. Apenas uma mulher tem assento entre os 25 membros do Politburo do Partido Comunista da China (PCC). Como é retratado no artigo de fundo desta edição, a este nível Macau está, igualmente muito longe da paridade nos lugares de topo. Encontramos apenas Sónia Chan, Secretária para a Administração e Justiça, entre os 13 titulares de principais cargos. 
O caminho da emancipação deve ser trilhado apoiando-se em políticas públicas e sensibilização rumo a uma mudança de mentalidades. Nesse sentido foram dados nos últimos anos passos importantes como a adoção da nova lei de combate à violência doméstica ou as alterações ao Código Penal relativas aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexuais. Persistem, no entanto, claras lacunas ao nível da legislação vigente. Os 56 dias de licença de maternidade paga previstos na lei laboral constituem um embaraço para Macau. E a mais recente proposta do governo de acrescentar 14 dias de licença não paga – a par de 3 a 5 dias de licença de paternidade paga – mantém a região ainda muito aquém das melhores práticas, desde logo da China continental onde a licença de maternidade paga chega aos 98 dias, em linha com as recomendações da Organização Internacional do Trabalho.
Perante esta situação, as empregadas domésticas cumprem um papel essencial que deve ser bem mais valorizado. A proposta dos Serviços de Saúde de aumentar em nove vezes o valor da taxa de parto cobrado às trabalhadoras não residentes vem no sentido contrário, motivando justas críticas pelo cariz discriminatório e justificação muito pouco convincente. São elas que afinal sustentam a outra metade do nosso céu.

Tuesday, March 06, 2018

Retrocesso


O limite de dois mandatos de cinco anos para os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República Popular da China, introduzido na Constituição em 1982 pela mão de Deng Xiaoping, teve como resultado a institucionalização da transição de poder entre gerações de líderes de forma pacífica e previsível. A medida revestia-se de um significado especial, não só porque o país estava ainda curar as feridas dos traumas da Revolução Cultural e do impacto do Culto da Personalidade em torno de Mao Zedong, mas também devido ao cariz inovador face a outros regimes de partido único, de tipo leninista. O passo em frente dado na altura permitiu a criação de um modelo de liderança mais assente no colectivo em vez de numa lógica de homens providenciais e abriu caminho – sobretudo a partir de 1993 com Jiang Zemin – a ciclos de dez anos de transição geracional de poder com o alinhamento entre a chefia do Estado (sujeita a limite de mandatos), partido e forças armadas (estes dois cargos sem limite imposto).
A transição entre Hu Jintao e Xi Jinping em 2012/2013 foi, a este título, exemplar com o ex-presidente a abandonar todos os cargos para uma passagem de testemunho “limpa”. Trata-se de um modelo que granjeou apreço a nível internacional e que serviu bem o processo de desenvolvimento da nação e de legitimidade do partido.
Todo este edifício de institucionalização está agora em risco de ruir. A proposta do Comité Central do Partido Comunista da China (PCC) de eliminação do limite dos dois mandatos na Constituição da RPC constitui um retrocesso e um desvio. O Mandato do Céu em forma de liderança colectiva permite uma melhor correção de erros e alguma pluralidade interna. Este passo que a Assembleia Popular Nacional (APN) se prepara para dar comporta vários riscos. A ambicionada estabilidade no curto prazo pode transformar-se em instabilidade no médio a longo prazo. E a questão não se prende apenas com a mensagem que esta medida envia para o exterior. Internamente, a perspetiva de perpetuação no poder do líder supremo – ainda que esclarecido – poderá abrir a Caixa de Pandora de onde saem pequenos tiranetes muito pouco esclarecidos. Velhos fantasmas pairam sobre a Nova Era.
José Carlos Matias  02.03.2018