Ontem Macau assistiu à maior manifestação desde o ano 2000 – e segundo alguns analistas, à maior desde a transferência de administração. Alguns milhares de pessoas (cerca de cinco mil)manifestaram-se contra a importação de mão de obra, num protesto que derivou para cenas de alguma violência, fruto de uma atitude mais agressiva de uma minoria e da resposta das autoridades. Independentemente da causa em questão – havia outras levantadas pelas pessoas como a luta pelo salário mínimo, contra o conluio de interesses e na generalidade por melhores condições laborais – o que releva interesse é o facto de estara acabar a paciência de uma parte da população face a um modelo de desenvolvimento que os deixa para trás. Este protesto deveria fazer pensar o governo da RAEM, entretido com as maravilhas do crescimento do PIB e com os novos investimentos na área do jogo e da hotelaria. É certo que o executivo anunciou na semana passada um pacote de aumento de pensões e prometeu maior rigor no combate à importação ilegal de mão de obra da China continental. Contudo, essas medidas são consideradas paliativos pelos que ontem expressaram o seu desespero. Também se sabe que nestes casos há sempre uma minoria que procura radicalizar o protesto para tirar dividendos políticos. Mas isso não pode servir de esponja para passar sobre um acontecimento inédito na RAEM. Além do mais, mesmo com a ausência da poderosa Associação Geral dos Operários, a mais representativa em termos de associativismo laboral, o protesto chegou às quatro-cinco mil pessoas.
Nos comentários ao que aconteceu, chamo a atenção para contribuições dos directores dos jornais diários em língua portuguesa:
1. Ao abraçar alegremente o “segundo sistema”, dada a reconhecida falta de cultura política, a sociedade de Macau adoptou, também, as desigualdades e, no extremo, a exclusão que o capitalismo sempre arrasta. Está agora a dar-se conta disso. Ao governo de Macau, habitualmente estigmatizado por suposta falta de legitimidade democrática (ironicamente de sentido contrário), abre-se agora a possibilidade de fazer doutrina na matéria e ser mesmo exemplo internacional.
Rodolfo Ascenso no Ponto Final.
2. A manifestação de cinco mil pessoas, ontem, nas ruas de Macau foi, sem margem para dúvidas, uma bofetada de luva branca na classe política e empresarial de Macau. Estas insistem, a um ritmo quase semanal, em passar atestados públicos de estupidez à população da RAEM. Finalmente, saiu para a rua um movimento social, organizado, capaz de exprimir as suas críticas, reivindicações e exigências sem temer que o fantasma da desestabilização social lhes seja imputado.
João Costeira Varela, Hoje Macau
3. Não sendo possível quantificar o número de manifestantes - todos os exercícios neste sentido são especulativos - nem parecendo ser isso o mais importante - em termos gerais, o número seria sempre reduzido a partir do momento em que a influente Associação Geral dos Operários se desmarcou do acontecimento - a grande vitória é do “segundo sistema” que mais uma vez se cumpriu, com a realização da manifestação.
José Rocha Dinis no Jornal Tribuna de Macau.
Estas são algumas pistas para uma reflexão que assume contornos mais complexos do que pode parecer a priori. A opção pela não-intervenção na economia e pela crença cega nas leis (im)perfeitas do mercado - linhas mestras que guiam o executivo da RAEM - tem os seus efeitos.
Muitos já tinham avisado; agora aconteceu. E duvido que este seja um caso isolado...
Há muitas movimentações que se conjugam no triénio 2006-2009: a "guerra" da sucessão de Edmund Ho, dizem, está em marcha acelerada; as assimetrias sociais agudizam-se; a batalha do jogo entrará numa nova fase.
As peças movimentam-se debaixo da cortina de fumo. E quando olhamos para Macau devemos recordar as palavras de João Aguiar:
Um pequeno universo difícil de aprisionar dentro de modelos que não sejam o seu…podemos ignorá-lo, desprezá-lo, mascará-lo, podemos fazer tudo excepto capturá-lo dentro dos limites estreitos da lógica comum. É um dragão, porque a China é terra de dragões. E é feito de fumo porque basta-lhe um momento ou um sopro para que a sua forma se altere e o que ontem foi deixe hoje de ser.(in “O Dragão de Fumo”).
P.S. Numa reflexão vinda das entranhas, Carlos Morais José olha assim para Macau:
Um filme francês dos anos 40 chamava a Macau “L’enfer du Jeu”, retratando uma cidade viciosa, contudo com patine, fascinante. Hoje caminhamos para o inferno do jogo, mas rodeados de plástico, nos prédios e nas almas das pessoas. Um inferno da cópia da cópia, do silicone, do falso, das vidas de preço módico. Acredito nas boas intenções do Chefe do Executivo mas, passados seis anos, é caso para dizer que de boas intenções está Macau cheio. E cada vez mais parecido com um pequeno inferno, onde a vida, a cultura, as pessoas têm cada vez menos consequência.
Vale a pena ler o artigo por inteiro: "Regresso ao inferno", no Hoje Macau.
Tuesday, May 02, 2006
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