Saturday, October 11, 2008

Devolver o "quan" ao povo

Texto publicado no Jornal Hoje Macau em 09-10-2008.

José Carlos Matias

O plenário do Comité Central do Partido Comunista Chinês (CCPCC) que se reúne nestes dias é considerado o mais importante dos últimos anos. Hu Xingdou, professor no Instituto de Tecnologia de Pequim, defende mesmo que este é o “plenum” mais relevante desde o início dos anos 1990. Pode parecer exagero, mas o certo é que há razões para olhar para este encontro com a máxima atenção. O CCPCC está reunido numa altura em que o mundo treme com a crise financeira internacional e num contexto de abrandamento do crescimento da economia chinesa. O conclave acontece após meses de exposição intensa da China face ao exterior, com o terramoto de Sichuan, os Jogos Olímpicos e escândalo do leite contaminado com melamina. Além do mais, em Dezembro passam 30 anos sobre o famoso discurso de Deng Xiaoping perante o CCPCC, quando pediu aos seus camaradas para emanciparem as mentes (do maoísmo) e abraçarem um novo rumo marcado pelas reformas e abertura (“Gaige kaifang”). Nos próximos quatro dias, na agenda de trabalhos, está o novo impulso que a liderança Hu-Wen quer dar às reformas, especialmente no que diz respeito ao mundo rural, onde vivem ainda mais de 700 milhões de pessoas. Em concreto que reformas deverão ser discutidas? A nova fase da “emancipação das mentes” implicará reformas políticas e administrativas com algum impacto?

Depois do “li”, venha o “quan”

Apesar de todas as transformações, interpretar os sinais políticos na China ainda é, parafraseando o sinólogo Simon Leys (pseudónimo do belga Pierre Ryckmans) algo semelhante à “arte de interpretar inscrições inexistentes escritas com tinta invisível numa página em branco". Em todo o caso, vale a penar anotar alguns sinais e declarações. Desde logo as palavras do líder do PCC na importante província de Henan. Zhang Chunxian afirmou que se nos últimos 30 anos a prioridade foi devolver o “li” (利 – no sentido de interesses económicos) às pessoas, agora o importante é devolver o “quan” ao povo. Numa tentativa de interpretar estas palavras, Wu Zhong, analista do Asia Times, salienta que o conceito de “quan” (权) é ambivalente: tanto pode traduzir-se por direitos como por poder. Provavelmente Zhang preferiu, propositadamente, não desfazer a dúvida.
Uma primeira leitura tem a ver com a prioridade anunciada pelos órgãos oficiais à agricultura. No plenum os membros da cúpula do PCC vão delinear políticas que privilegiam a China que vive no campo e que tem beneficiado menos com o processo das reformas económicas que trouxeram prosperidade sobretudo às zonas costeiras e às cidades.

A atenção ao mundo rural

O eixo Hu-Wen é conhecido por ter muito mais sensibilidade para as questões rurais que Jiang Zemin e Zhu Rongji. Pouco depois de ter assumido a chefia do partido e do estado, a Quarta Geração (“disidai”) tomou várias decisões com vista à redução substancial da carga fiscal imposta aos camponeses e às suas famílias. No ano passado, a Assembleia Popular Nacional aprovou um pacote de medidas que incluiu a gratuitidade do ensino primário para as famílias que vivem nas zonas rurais e uma expansão do sistema cooperativo e cuidados de saúde. Sem dúvida que este conjunto de medidas – corte drástico da carga fiscal e apoios na saúde e educação – constituíram passos positivos no apoio às zonas rurais. Mas isso não fez com que as revoltas e protestos no campo tenham aparentemente diminuído. A aquisição por parte dos governos locais de terras usadas (mas não detidas) por camponeses para serem entregues a projectos imobiliários ou industriais tem gerado protestos por vezes violentos. De resto, a instabilidade e os problemas que afectam as zonas rurais têm sido questões plenamente assumidas pela liderança chinesa em inúmeras ocasiões. O percurso de Hu Jintao, que chefiou o partido em províncias do interior e menos abastadas como Guizhou e Tibete, e o talento de Wen Jiabao para “falar ao coração” dos camponeses são factores que potenciam a promoção deste tipo de políticas. Por outro lado, a ausência de medidas de promoção do bem-estar dos direitos da população que vivem nas zonas rurais poderia colocar em causa não só a estabilidade social como a legitimidade do Partido. Contudo, essa necessidade de preservar alguma “harmonia social” implica outros passos mais audazes. Wu Zhong indaga se “quan” poderá significar direitos ligados à propriedade rural. Actualmente, os camponeses podem “arrendar” o uso da terra através de um contrato normalmente válido por 30 anos, mas, na prática, os governos locais podem resgatar uma propriedade em nome do interesse do estado. Isso acontece muitas vezes sem que os camponeses tenham uma compensação adequada, o que tem gerado inúmeros protestos.

Que direitos e poderes?

Sendo muito improvável que sejam dados passos no sentido da privatização dos terrenos agrícolas, faz todo o sentido que sejam levadas a cabo mudanças no sistema de gestão e uso das terras por parte dos camponeses. Por exemplo, Wu especula se o direito de uso dos terrenos poderá ser atribuído às aldeias colectivamente. Assim, sempre que uma empresa quisesse usar essa propriedade teria que negociar com os líderes dos comités de aldeia. Um cenário destes poderia retirar a dirigentes e membros locais algum (ou muito) espaço de manobra para os conluios que tantos protestos têm causado.
Numa outra interpretação, o “quan” enquanto poder poderá implicar o reforço de mecanismos de auscultação e consulta quando do processo de tomada de decisões. É nesse sentido que devem ser entendidas as palavras de Hu Jintao e Wen Jiabao quando salientam que é preciso aprofundar a “democracia socialista com características chinesas”. Tudo poderá passar pelo que Yu Keping chama de democratização gradual. Em “Ideological Change and Incremental Democracy in Reform-Era China”, Yu, que ficou famoso pelo texto “Democracy Is a Good Thing”, considera que sendo a participação cívica essencial na democracia política, a melhor forma de avançar com as reformas políticas é “alargar a participação política por parte dos cidadãos”. Sendo esta uma asserção de “La Palisse”, não deixa de ter algum significado considerando que Yu é director adjunto do Departamento de Tradução do partido Comunista Chinês e que tem sido a voz mais audaz, nas estruturas dirigentes do Partido, na defesa da “democracia” como algo de bom para a China. Democracia essa gradual, de acordo com as características e necessidades da China e, claro, tendo o PCC como líder em todo o processo.

O “li” também inspira cuidados

Além de se poder especular sobre que tipo de “quan” será devolvido ao povo, é oportuno também ter em conta que o “li” (interesse económico) está a passar por um período diferente dos tempos em que o céu parecia o limite. Wen Jiabao tinha avisado em Fevereiro que este seria um ano difícil para a economia chinesa. Tudo começou com as tempestades de neve que paralisaram parte do país durante vários dias. Ao mesmo tempo, a inflação começara a atingir níveis alarmantes, sobretudo no custo dos alimentos. Com a subida dos custos de produção, valorização do yuan e com a perspectiva de uma crise económica nos mercados de consumo e exportação da maioria dos bens produzidos na China, certamente que “o motor” que tem gerado crescimentos anuais de cerca de dois dígitos inspira cuidados.

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