Wednesday, April 04, 2018

Autonomia, relevância e substância

José Carlos Matias

O primeiro-ministro, Li Keqiang, anunciou, na abertura da Assembleia Popular Nacional, que, em breve, vai ser revelado o plano de desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau. O objetivo é claro: acelerar o caminho para a integração regional, rapidamente e em força. As declarações do Diretor do Gabinete para os Assuntos de Hong Kong e Macau do Conselho de Estado também não deixam margem para dúvidas, ao salientar que vai ser necessário agilizar leis e mecanismos para melhorar o fluxo de talentos, bens, capital e informação entre o espaço da Grande Baía: nove cidades da província vizinha e as duas regiões administrativas especiais. Trata-se de um enorme desafio para Macau, que vai determinar e moldar o rumo da região nas próximas décadas que nos vai levar até, e além de 2049. Neste contexto, é fundamental que Macau se posicione para maximizar o seu papel e tirar proveito das oportunidades criadas. É crucial, no entanto, que este processo não seja apenas desenhado a partir do topo; Macau e as suas gentes devem ter voz própria para elevar a sua relevância e autonomia, suplementando e enriquecendo o processo de desenvolvimento nacional e da região do Delta do Rio das Pérolas. A fórmula a ser desenvolvida deve conter garantias de preservação e projeção das caraterísticas diferenciadoras da RAEM.  
A ligação com os países de língua portuguesa é, desde logo, estruturante neste processo, não só porque fortalece Macau interna e externamente, como porque permite que a cidade se constitua como mais-valia no contexto da Grande Baía. Serão precisas políticas concretas que deem robustez a esta estratégia, que deverá posicionar Macau, não apenas como plataforma económica e comercial sino-lusófona, mas, de igual modo, como polo cultural, científico e académico. É aqui que a relevância se entrecruza com a autonomia. 
Todavia, não poderá ser uma autonomia despida de substância, de um sólido sistema jurídico e de um catálogo de direitos liberdades e garantias que dão sentido e identidade a Macau. O respeito, observância e valorização destes princípios não pode cingir-se a declarações genéricas de adesão ao princípio “Um País, Dois Sistemas”. A pujança do segundo sistema advém de um estado de direito vigoroso, de uma cidade tolerante e aberta, em que as liberdades são, efetivamente exercidas e não somente proclamadas, começando pela liberdade de expressão. Evitar ser esmagada pelo abraço do urso é de crucial importância. O que se passou no Festival Rota das Letras, relativamente aos “escritores inoportunos” e o que veio a lume nos últimos dias é um alarmante sinal de perigo. Não devia ter sucedido e não pode voltar a acontecer. A autonomia tem de ter relevância e substância.  


Tuesday, April 03, 2018

Fórum, visão e ambição

José Carlos Matias

A criação do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Fórum de Macau) em 2003 constituiu um alicerce estruturante da então recém-criada Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). Deu-lhe sentido e identidade, religando-a ao seu passado e projetando-a no futuro. Um futuro enquadrado numa estratégia geopolítica e geoeconómica de uma China emergente. Deu também sentido e sentimento de pertença às comunidades lusófonas de Macau que que passaram a sentir-se mais em casa, num contexto de ansiedade pós-transição. E deu sentido multilateral à rede de relações institucionais e pessoais entre a China e os PLP. Por tudo isto e muito mais o Fórum foi uma iniciativa que primou pela visão e inovação por parte do Governo Central. 
Passados 15 anos, o balanço é positivo. O Fórum e o projeto de Macau como plataforma foi sendo materializado através de uma miríade de eventos em que participaram e interagiram milhares de pessoas destes mundos, à medida que as áreas de cooperação se foram alargando. Todavia, subsiste aquilo que Christopher Hill designou de “capability-expectations gap”, quando, em 1993, se referia ao projeto europeu. Ou seja, tendo em conta as vontades políticas das partes – China e PLP – e os recursos financeiros de Macau, as expetativas elevadas esbarraram numa falta de capacidade – e por vezes de vontade – da RAEM e das suas elites de elevar este projeto a um patamar de prioridade.
O encaixe do Fórum e de Macau como plataforma na relação entre a Grande Baía e os PLP – salientado durante as reuniões este mês em Pequim da Assembleia Popular Nacional e da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês – afigura-se agora como uma via de valorização e autonomia que deve ser aproveitada com inteligência. É a porta aberta e o caminho de abertura O futuro é aqui, agora. Passa pelas grandes, mas sobretudo pequenas e médias empresas com valor acrescentado, start-ups, serviços e instrumentos financeiros, arbitragem comercial, pelas novas tecnologias amigas do ambiente, pela economia do mar, por um Fundo de Cooperação e Desenvolvimento efetivamente acessível, por um envolvimento maior dos PLP, nomeadamente do Brasil, de Macau e pela cooperação entre cidades e províncias. Mas passa também reforço de intercâmbios entre pessoas, cultura, educação e desporto. O Fórum está bem, recomenda-se, mas pode – e deve – ser melhor. Com visão e ambição.  

Da proporcionalidade e do bom senso

José Carlos Matias

A regulamentação do Artigo 23º da Lei Básica, respeitante à Lei de Defesa da Segurança do Estado, em 2009, foi um grande teste à Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). Em cima da mesa estava a articulação da necessidade de preservar e promover a soberania e segurança nacional e os princípios basilares do sistema jurídico distinto da região, cumprindo e concretizando a lei fundamental da RAEM. O resultado final acabou por ser uma síntese que gerou um amplo apoio local, num processo em que foram tidas em consideração opiniões de juristas locais. Em suma, houve uma boa dose de bom senso e proporcionalidade.
A RAEM tem sido, aliás, constantemente elogiada pelo Governo Central pelo seu empenho na prática correta do princípio Um País Dois Sistemas. Não se conhecem movimentos ou sequer vozes em Macau que coloquem em causa a soberania e integridade territorial da República Popular da China. Pelo contrário; o generalizado sentimento patriótico das gentes locais é uma evidência, mesmo junto do chamado campo pró-democracia. Posto isto, o texto publicado na semana passada no site do Gabinete do Secretário para a Segurança sobre a necessidade de aperfeiçoar o Regime Jurídico-penal relativo à Defesa da Segurança do Estado causa perplexidade. No artigo é referido que, passados nove anos, há uma perceção de que a lei que regulamenta o artigo 23º da Lei Básica “está pronta, mas não se usa, mantendo apenas os seus efeitos dissuasores”. 
Posteriormente, o Gabinete do Secretário afirmou à Rádio Macau que não há planos concretos para rever a lei e que, afinal, o texto em causa é resultado de um estudo levado a cabo por iniciativa de um funcionário do gabinete, sendo que a intenção seria “partilhar essa reflexão com os cidadãos de Macau”. Subjazem, no entanto, questões sobre a necessidade, intencionalidade e oportunidade desta publicação, sobretudo face à crescente onda securitária local e aos ventos que sopram do Norte.
É crucial que haja sentido de equilíbrio, nomeadamente numa altura em que a RAEM se prepara para adotar a lei do hino nacional e a lei da cibersegurança. A chave está na harmonização da raison d’etat com os direitos, liberdades e garantias. E no exercício do poder e aplicação da lei é fundamental que, para evitar arbitrariedades e discricionariedades, se observe não apenas o princípio da legalidade, mas também o bom senso e sentido de proporcionalidade. Algo que nos últimos tempos tem faltado.