Saturday, December 13, 2008

“N'a pas voulu offenser”

Texto Publicado no jornal Hoje Macau em 11/12/2008

José Carlos Matias



Há quatro ou cinco anos o que se passou seria impensável. O então presidente francês Jacques Chirac nunca desafiaria Pequim ao encontrar-se com o Dalai Lama. A China, por consequência, nunca adiaria unilateralmente uma Cimeira com a UE. Quer isto dizer que a relação entre Pequim e Paris e mesmo entre a China e a UE mudou de características. Já desde 2006 que era bem visível que o namoro entre as duas partes – classificado por alguns apenas como um “trade love affair” – tinha evoluído para um casamento complexo. À luz da complexidade da interdependência nas relações sino-europeias, não há lugar a um divórcio. Em todo o caso, parece claro que estamos perante uma “crise conjugal”. Pequim já disse que o adiamento é uma forma de castigar o chefe de estado francês e não tem como objectivo fazer recuar a dinâmica de cooperação sino-europeia que tem crescido exponencialmente ao longo dos últimos anos. Contudo, o episódio comporta aspectos que vêm à tona e outros mais profundos e que mexem com as estruturas do relacionamento entre a China e a UE. Sendo cedo para tirar conclusões precipitadas, vale a pena olhar para o que está em causa à vista desarmada.

Sarkozy, a “bête noir”

No que diz respeito ao episódio que gera a polémica, esta não é, de facto, a primeira vez que Sarkozy “irrita” Pequim. Já em Abril o presidente francês tinha indicado que poderia boicotar a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos caso a China não dialogasse com o Dalai Lama. No dia 8 de Agosto, pelas 8 da noite, lá estava Sarkozy na tribuna VIP do Estádio Ninho de Pássaro. O presidente de França - país que desde Charles De Gaulle tem sido um dos aliados mais próximos da China – marcou presença também na qualidade presidente em exercício da União Europeia. Afinal, disse o antigo “enfant terrible” da direita francesa, Pequim estava a dialogar com o líder tibetano no exílio (um diálogo que parece não ter levado a lado algum, por enquanto).
Depois de ter escapado a um encontro com o Dalai Lama em Agosto, quando enviou a sua esposa Carla Bruni e o idealista chefe da diplomacia francesa Berard Kouchner, Sarkozy não quis repetir o número e desta vez “enfrentou” a China e encontrou-se com o Dalai Lama, na Polónia, numa cerimónia em que participaram outras personalidades a quem foram atribuídos Prémios Nobel da Paz.
Duas semanas antes, Pequim tinha elevado a parada ao adiar unilateralmente a cimeira UE-China, chocando alguns parceiros europeus, chefes de estado e de governo e empresários que estavam já de armas e bagagens em Lyon para o conclave e os contactos empresariais. A resposta chinesa surge aos olhos de muitos observadores (eu incluído) como muito pouco razoável, independentemente de se poder discutir sobre a (falta de) oportunidade do gesto de Sarkozy. Mas afinal por que razão decidiu a China “castigar” não só o presidente francês, mas também os parceiros europeus com uma atitude tão radical? Ainda por cima, numa altura em é muito importante o diálogo entre as duas partes num contexto de crise financeira e económica internacional.

Dualidade de critérios

À superfície foram explicados alguns argumentos. O analista chinês Feng Zongping escreveu na China Daily, pura e simplesmente, que Pequim não quer que os líderes ocidentais se encontrem com o Dalai Lama e os negócios continuem como se nada tivesse acontecido. Mas se este ano a chanceler alemã Angela Merkel ou o chefe de Governo britânico Gordon Brown se encontraram com o Dalai Lama, o que tem de tão grave este encontro? Um editorial no China Daily publicado na segunda-feira, dia 8 de Dezembro, esclarecia esta questão: pela primeira vez um presidente em exercício da União Europeia encontrava-se com o dito cujo Lama. Algo que equivaleria, na linha de argumentação chinesa a um encontro entre Hu Jintao e o líder da Frente Nacional de Libertação da Córsega. Esta justificação – de Sarkozy ser presidente em exercício da UE – esbarra noutra comparação que podemos fazer: George W. Bush, presidente dos EUA, também teve este ano um encontro com o senhor em causa. Provavelmente, aqui entramos numa outra questão - a forma diferente como a China trata das relações com os EUA e com a UE. É curioso verificar que dias depois de ter adiado unilateralmente a cimeira com a UE, Pequim recebeu de braços abertos o Secretário do Tesouro Henry Paulson, numa sessão do Diálogo Económico Estratégico que decorreu num tom amistoso. Recorde-se que há não muito tempo, Pequim orgulhava-se de ter uma relação bem mais harmoniosa com Bruxelas do que com Washington.
O francês Jean-Vincent Brisset, do Instituto Internacional de Relações Estratégicas de França, tem uma visão cortante e com traços realistas (no sentido teórico, de um mundo em que cada estado procura maximizar a sua posição relativa de poder sobre os outros). Em declarações à Revista Time, Brisset diz que a razão pela qual a China foi tão longe prende-se com o facto de Paris ter “repetidamente mostrado fraqueza ao claudicar perante a pressão da China”. Para este investigador, "a China apenas respeita aqueles que resistem às pressões, como foram os casos da Alemanha e do Reino Unido".
Numa outra leitura, o colunista norte-americano John Pomfret indicia que a “linha dura” da diplomacia chinesa está por detrás desta posição, à semelhança do que sucedeu no período inicial da “crise” do Tibete este ano.

De novo a ameaça de boicote

Tendo em conta os interesses estratégicos em causa, é importante agora fazer uma gestão desta crise. Antes disso é preciso perceber o que vai Sarkozy fazer para amaciar a sua abordagem a Pequim e se as ameaças de boicote a produtos franceses – numa nova versão depois dos protestos contra os supermercados Carrefour em Abril e Maio – se concretizam. O jornal China Daily escreveu que o presidente francês será o culpado por eventuais quebras nas vendas de produtos como a Louis Vuitton ou nos supermercados Carrefour. Mas o que mais preocupa Paris é um cenário de queda das encomendas de aparelhos Airbus em detrimento dos norte-americanos Boeing. Com este discurso, não é de admirar que nos fóruns da internet na China já abundem apelos ao boicote. Afinal, diz o jornal, a atitude de Sarkozy magoou não apenas os dirigentes, mas também o povo chinês. Tudo isto não augura nada de bom. Muitos europeus não entenderão boicotes e novas manifestações anti-França, especialmente numa altura em que o “soft power” da China sofreu uma grande erosão, num ano marcado pela forma como a Europa e os EUA entenderam os acontecimentos no Tibete e pelo escândalo dos produtos contaminados com melamina. Katinka Barysch, do Centre for European Reform, escrevia há dias no Wall Street Journal que o sentimento proteccionista face à China está a aumentar na Europa. Um estudo recente indica ainda que na Alemanha a China tem uma imagem cada vez menos favorável. Indicadores estes que, valendo o que valem, contrariam os dados de há quatro ou cinco anos, quando a emergência da China era encarada no Velho Continente como um aspecto positivo nas relações internacionais e uma oportunidade de negócios.
Para inverter esta percepção – resultante em grande medida do desequilíbrio da balança comercial, a favor da China - Dai Bingran, professor na Universidade de Fudan, considera fundamental que sejam afastadas as pulsões proteccionistas de forma a que seja dada prioridade ao aumento das exportações europeias para a China e não seja dada primazia à imposição de barreiras à entrada de produtos chineses no espaço europeu.

Por um “realismo visionário”

Todavia, convém não exagerar a importância destes sinais. Tudo será manejável. Pedindo emprestadas as palavras a Timothy Garton Ash, em “Only a strategic partnership with China will keep this new dawn bright”, no jornal the Guardian, é preciso nas relações UE-China um “realismo visionário”. Num texto escrito por altura do adiamento da cimeira, Ash faz um apelo para que não só seja mantido o nível da parceria, mas a um reforço para que sejam dados passos mais firmes - esses sim verdadeiramente estratégicos. No passado recente, as relações são, por vezes, condicionadas pelo que o historiador britânico chama dos quatro Ts: Trade, Tibet, Taiwan e Tiananmen. Para que esses Ts não assombrem os laços, Garton Ash propõe uma parceria focada em quatro objectivos: uma ordem económica global reformada, uma abordagem ao desenvolvimento multilateral e multidimensional (incluindo boa governação, transparência, estado de direito e democracia), energia e ambiente e reverter a proliferação nuclear.
O académico britânico defende que trabalhar com a China implica mudar a típica abordagem ocidental de estabelecer posições comuns e apresentá-las à China como exigências. O novo caminho, diz, deve passar por posições estratégicas genuinamente comuns. Também Jonathan Hoslag adverte que “qualquer política europeia face à China deve ter por base uma avaliação realista e não vistas curtas”. O académico belga salienta que “a inércia chinesa face ao proselitismo europeu não vai mudar em breve”. É que a RPC “está determinada em escrever a sua própria história e não aquela que lhe é ditada por outros”.
No futuro imediato, assim que a poeira deste episódio lamentável assente, o mais importante é ter em mente o essencial. Parafraseando Stanley Crossick, do European Policy Centre, no seu blogue, face ao cenário de depressão económica, vulnerabilidades do sistema financeiro mundial, mudanças climáticas, terrorismo ou segurança energética, os líderes europeus e chineses não podem deixar de trabalhar em conjunto por causa da questão do Tibete. Essa questão deverá ser tratada – sim – mas com base numa melhor percepção mútua da forma tão dispare como o assunto é percebido pelos líderes e opiniões públicas dos dois lados.

1 comment:

Anonymous said...

quem acredita no Sarkozy?