Texto publicado no jornal Hoje Macau em 07/08/2008
José Carlos Matias
我们仍然在仰望星空
Women rengran zai yangwang xingkong*
À primeira vista, o debate ideológico na República Popular da China está moribundo. O Partido Comunista Chinês (PCC) “desincentiva” a expressão pública de vozes dissonantes que atacam ferozmente a linha oficial e imprime o ritmo de manufactura da semântica que mantém viva a perspectiva da construção do “socialismo com características chinesas”. Não deixando de ser assim, ao longo dos últimos 18 anos têm sido publicados artigos e livros na China que destoam da retórica oficial e que colocam em causa a forma como “a economia de mercado socialista” está a ser construída.
As vozes que têm mais eco no exterior são as que defendem posições liberalizadoras quer politica quer economicamente: os “desvios de direita”, na linguagem clássica Maoísta.
Do outro lado do espectro, encontramos intelectuais que apontam o dedo à via capitalista seguida pelo governo central por esta estar a contribuir para a desintegração das redes sociais e a desvirtuar a natureza do estado socialista fundado em 1949. Neste campo, destacam-se duas linhas “esquerdistas”: os Neo-Maoístas e a “Nova Esquerda”. Os primeiros perderam muito do fulgor que os caracterizou na década de 1990, ao passo que os segundos têm emergido como um movimento com alguma influência junto do governo central e da liderança do PCC.
O revivalismo Maoísta
Após a repressão violenta sobre os estudantes na Praça de Tiananmen, foi lançada uma esmagadora “caça às bruxas” junto dos sectores próximos das posições dos ex-secretários gerais do PCC Hu Yaobang e Zhao Zhiyang. Nesse período, no início dos anos 1990, os denominados movimentos Neo-Maoístas ganharam espaço em jornais e revistas e conseguiram mesmo colocar algumas figuras na chefia de ministérios. Este grupo advoga um regresso à fase anterior ao Grande Salto em Frente e à Revolução Cultural. No início dos anos 1990 lançaram campanhas ao estilo Maoísta contra o aburguesamento de sectores do Partido e contra as reformas económicas.
Estas forças continuaram a ter algum espaço em boa medida porque eram patrocinadas por figuras da Velha Guarda como Deng Liqun. O fantasma do colapso da União Soviética foi avivado durante os anos 1990. Nos seus artigos, os autores culpavam a abertura económica pela corrupção, desemprego, despedimentos de empresas estatais entretanto privatizadas e desigualdades sociais. Uma das principais publicações deste movimento, a “Contemporany Ideological Trends” resumia a posição Neo-Maoístas de forma clara: “No passado os colonialistas ocidentais usaram o ópio para nos envenenar, agora a burguesia tenta usar os seus valores para nos transformar”. O espaço para a “extrema-esquerda” diminuiu consideravelmente fruto de acção directa do próprio Deng Xiaoping, primeiro, e de Jiang Zemin, mais tarde. Durante a primeira década do Século XXI ganhou força outra sensibilidade, também à esquerda da linha oficial do PCC, mas com características diferentes.
Uma “Nova Esquerda” com características chinesas
A “Nova Esquerda” chinesa tem vindo a ganhar peso quer junto de professores e estudantes, quer de dirigentes do Governo. O termo “nova” pode enganar e levar a uma analogia com a “Nova Esquerda” europeia filha do Maio de 1968. No caso da China serve para distinguir este grupo de intelectuais da “Velha Esquerda” chinesa de raiz maoísta. Ao contrário destes últimos que se cingem ao marxismo leninismo clássico e ao Maoísmo, as referências da Nova Esquerda abrangem as obras de Immanuel Walerstein e Ferdinand Braudel ou movimentos como a Escola Crítica de Frankfurt e os Estudos Culturais.
O aspecto central das suas teses diz respeito à formulação de uma alternativa chinesa à globalização neoliberal. A “Nova Esquerda” critica ferozmente a forma como a abertura económica foi conduzida, levando a um agravamento das desigualdades sociais e ao alastrar da corrupção. Ao longo dos anos, muitos dirigentes políticos locais usaram arbitrariamente os seus poderes paras e tornarem empresários de sucesso à custa de expropriações ilegais de terras de uso colectivo de comunidades rurais para as entregar de bandeja a empresas do imobiliário. Na verdade, argumenta Wang Hui, o resultado tem sido uma aliança da elite política local corrupta com os interesses económicos e comerciais. Algo seguramente pouco socialista. Contudo, Wang aplaude a primeira fase das reformas económicas lançadas por Deng, entre 1979 e 1985. O problema surgiu, diz, quando começaram a ser destruídas as redes sociais.
A influência em Zhongnanhai
Apesar de todas estas críticas ferozes ao processo de desenvolvimento chinês, os textos da Nova Esquerda chinesa continuaram a ser publicados e a ser promovidos, especialmente através da Revista Dushu, dirigida até há um ano por Wang Hui. Além disso, as posições de Wang Hui, Cui Zhiyuan, Wang Shandong e Zhang Xudong começaram a ter eco nos círculos próximos de Hu Jintao e Wen Jiabao. Numa entrevista ao New York Times, Wang Hui esclarece a sua posição face ao estado e ao Partido: “O PCC ainda é a principal força transformadora da sociedade”. Quanto às políticas do Governo Central algumas apoiam outros não. “Depende do conteúdo das políticas”. Em 2006, Wen Jiabao proclamava a construção do “Novo Campo Socialista”, dirigindo-se às zonas rurais, como uma tarefa histórica crucial para o PCC. No mesmo discurso, o primeiro-ministro salientava a necessidade de encontrar equilíbrio entre crescimento económico e protecção do ambiente.
A declaração de Wen agradou à Nova Esquerda. Outras políticas sociais anunciadas em 2007 e 2008 contribuíram para que alguns analistas considerassem que este grupo esquerdista estava a ganhar cada vez mais peso junto do poder. O facto de Wen Tiejun, considerado próximo da Nova Esquerda, ter estado em sessões de “brainstorming” com Hu Jintao e Wen Jiabao reforçou essa percepção.
O facto de este grupo se opor a uma democratização de tipo ocidental ajuda a explicar o grau de tolerância manifestado pelas autoridades. A Nova Esquerda defende uma democracia socialista com características chinesas, uma expressão vulgarmente usada pela doutrina oficial. Por exemplo, Kang Xiaoguang, professor na Universidade Renmim de Pequim argumenta que a China precisa de construir um estado cooperativo – “Hezuo zhuyi guojia” - para lidar com problemas relacionados com a corrupção e desigualdades de rendimentos e na distribuição de riqueza. Kang defende um sistema organizado em sectores funcionais da sociedade, que pudesse negar à burguesia a posição dominante e manter justiça social.
A atenção aos desvios esquerdistas
Não se deve contudo exagerar no peso que este grupo tem. Tudo depende de até onde vão as críticas e quais são os equilíbrios internos nas altas esferas do poder. Exemplo disso é o facto de em Julho de 2007 Wang Hui e Huang Ping terem sido afastados da direcção da revista Dushu. A justificação dada pela Joint Publisher Co, editora estatal, não convenceu muitos intelectuais e leitores da revista. A editora argumentou que a Dushu estava a ter uma circulação reduzida, quando estava a atingir 100 mil de tiragem, o melhor desempenho em 28 anos de história da publicação. Outra razão dada disse respeito à linguagem da Revista ser demasiado específica. Apesar de aparentemente ser mais “à esquerda” do que Deng ou Jiang, a liderança de Hu e Wen não terá esquecido o que disse Deng Xiaoping em 1993: “A China deve estar vigilante contra os desvios de direita, mas deve sobretudo ser cuidadosa face aos da esquerda”.
*Título do livro da economista He Qingliang, em que a autora critica severamente o modelo de desenvolvimento económico e social da China e o princípio enunciado por Jiang Zemin dos “Três Representantes”. A tradução do título do livro é algo parecido com “Nós ainda estamos a olhar para o céu estrelado”. O livro foi lançado em 2001 e prontamente proibido na República Popular da China.
Saturday, August 09, 2008
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